Em três meses, a educação a distância avançou o que não foi possível em dez anos
A essa altura, todos estão conscientes que o mundo já mudou. Pouco importa se a mudança foi planejada ou se é a consequência ainda em andamento de uma tragédia: todos precisamos viver com os resultados da COVID-19 e os seus desdobramentos. Mas quais foram essas mudanças?
Muita coisa ainda está se desenhando. Novos padrões sociais, um senso mais apurado da fragilidade (e da resiliência) humana, uma visão de um mundo menor e mais interligado… Dores, preocupações, dificuldades e oportunidades, tudo faz parte do novo mundo. Especialmente o desconhecido.
Mas mesmo no turbilhão de incertezas e anseios, há áreas que já se anunciam como novas frequentadoras da nossa realidade. A educação à distância é uma delas: a pandemia impôs um modelo educacional em uma escala que era impensável até o início do ano.
A EAD no microscópio
A suspensão das aulas presenciais em praticamente todo o mundo como parte das medidas de prevenção de contágio do coronavírus criou uma situação de desespero nas escolas. De uma hora pra outra, sem nenhum aviso, o modelo pedagógico de milhares de instituições de ensino precisou ser radicalmente remodelado para evitar a perda do ano letivo (e a falência dos estabelecimentos particulares). Uma pequeníssima parcela já estava experimentando com tecnologias educacionais e educação a distância, e essa parcela teve uma transição mais tranquila. A grande maioria, no entanto, precisou encontrar soluções, implementar ferramentas e plataformas, capacitar professores, produzir conteúdo, adaptar sistemas de gestão, criar formas de comunicação com alunos e familiares… isso somente para começar a ensaiar algumas aulas.
Todo esse esforço levou algumas instituições a adotar modelos questionáveis, ou simplesmente a tentar repetir em uma câmera o que o professor costumava fazer em sala de aula. O resultado, como era de se esperar, foi – com muita generosidade – pífio. As escolas que tiverem capacidade de aprender com esse tipo de erro – e fôlego financeiro para se manterem de pé – terão a oportunidade de tentar de novo, mas terão que ser certeiras nas novas propostas pedagógicas.
Enquanto isso, outras instituições optaram por consultar especialistas e fazer um planejamento um pouco mais ambicioso, pensando no médio e longo prazo. Pagaram o preço de começar a implementação do novo modelo um pouco mais tarde, mas, em contrapartida, seus projetos pedagógicos trouxeram mais segurança e confiabilidade para pais e alunos.
O que todas as instituições perceberam, no entanto, foi que a educação a distância pode funcionar – e que agora todos estão de olho nessa nova modalidade.
O mundo educacional pós-coronavírus
À medida em que as pessoas se acostumam com o novo mundo, começamos a criar novos hábitos. Rotinas diferentes substituem parte do nosso dia-a-dia. Passada a crise, alguns novos hábitos cairão por terra e retornaremos ao be-a-bá do passado, mas outros devem permanecer.
As instituições de ensino vão adotar (parcialmente) o modelo de EAD
Nem que seja como medida preventiva para o próximo COVID, a maioria das escolas deverá incorporar ao menos parte das ferramentas e modelos pedagógicos da educação à distância ao seu programa tradicional. Afinal, a maior parte dos investimentos já foi feito: equipamentos, plataformas, capacitação de professores e equipe técnica… Por que não aproveitar isso e, quem sabe, criar novas fontes de receita?
Além disso, a EAD (quando bem utilizada) tem o potencial de agregar muito valor às aulas presenciais – monitorias virtuais, simulados online, reforço para alunos, aulas de reposição para alunos que tiveram que se afastar por doenças ou outra condição, preparatório para vestibulares, plantão de dúvidas, repositório de pesquisas, aulas de recuperação, cursos de férias, atividades (e cursos pagos) extracurriculares, degustação (“aulas grátis” para os interessados em conhecer a escola), ampliação dos estudos por interesse do aluno… as possibilidades são enormes.
A cultura dos alunos (e das famílias) vai se acomodar para incluir a EAD
Um dos principais desafios da EAD pré-crise era cultural. A maioria das pessoas acreditava que o aprendizado por EAD era “de menor qualidade” do que o tradicional (mesmo com os enormes problemas e deficiências do modelo presencial evidenciados em qualquer ENEM ou exames internacionais em praticamente todos os países). Muitos pais acreditavam – pelas suas próprias experiências de vida – que a educação só funcionaria se os filhos estivessem sentados em uma sala de aula por pelo menos algumas horas por dia, de segunda a sexta, com um professor repassando o conteúdo. Essa visão já estava mudando (a passos muito, muito lentos). No entanto, durante a crise, esses mesmos pais assistiram seus filhos tendo aulas no computador, fazendo trabalhos e pesquisas de maneira independente, resolvendo exercícios e tarefas de casa em um volume difícil de acompanhar (às vezes até para os próprios alunos) e escolas se comunicando com as famílias como nunca se havia visto.
A crise provocou uma mudança na percepção de qualidade da educação a distância. O sentimento predominante agora se traduz mais pela expressão “a coisa funciona mesmo!” do que pelo antigo conceito de “eu não acredito nisso”.
As escolas devem flexibilizar horários e currículos (se os órgãos reguladores deixarem)
Outra consequência das novas práticas educacionais está na possibilidade dos alunos escolherem quando irão assistir aquele vídeo de Física que o professor passou, e com qual profundidade o trabalho de História será feito. A possibilidade de utilizar a internet com mais liberdade tem lá os seus perigos, mas também amplia as opções e, se bem trabalhada, pode estimular a curiosidade dos mais jovens em superar a lei do “mínimo esforço necessário” para ser aprovado em uma disciplina. Quem sabe essa nova geração conectada, impactada pela tragédia pandêmica, consiga trazer à luz os próximos Einstein, Hawking, Mandella, Gandhi… O mundo precisa muito de novos visionários que tenham a curiosidade e a gentileza alinhados à habilidade para construir o novo.
É claro que essa mudança em particular depende da bênção dos órgãos reguladores – no Brasil, o Ministério da Educação e as Secretarias Estaduais de Educação. Resta-nos descobrir se existirá vontade política para oficializar o que já está acontecendo e regulamentar a oferta de EAD, adotando critérios de qualidade que privilegiem a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos.
Veremos uma educação com mais abertura para o indivíduo
Outra característica da EAD é a sua capacidade de incluir as expectativas e desejos do próprio aluno dentro do programa de estudos. Uma vez que a internet se abre como canal de construção do conhecimento, seja de maneira colaborativa ou individual, cada um pode buscar seus próprios interesses e trazê-los para seus projetos de pesquisa, trabalhos, plantões de dúvidas ou proposição de temas para discussão. Professores que souberem aproveitar e estimular esses interesses perceberão alunos muito mais engajados, curiosos e compromissados com a própria aprendizagem.
Mas nem tudo será virtual
A evolução da educação à distância certamente está mudando os hábitos e provocando uma revolução de escala e velocidade sem precedentes, especialmente se considerado o setor em que isso acontece. Poucas áreas são tão conservadoras e resistentes à mudança quanto a educação. Mas não é por isso que alguns aspectos do sistema tradicional devem permanecer.
O contato social entre as pessoas – o abraço, o convívio, a simples atividade física de correr no pátio de uma escola – também possui um papel fundamental no aprendizado humano. As habilidades não-formais que todos precisam desenvolver encontram usas melhores oportunidades para florescer nesse tipo de convívio.
O relacionamento com professores e a figura de um “mentor” também tem o seu espaço garantido, desde que os nossos mestres entendam que não terão mais o papel de senhores do saber, mas sim de facilitadores e instigadores – aqueles que estimulam o jovem a fazer as perguntas certas, a entender as consequências das suas ações, a respeitar os limites próprios e dos outros. Não há mais espaço para o professor “dono da verdade”, que tem dificuldade em acreditar que um aluno possa saber alguma coisa que ele desconhece. Aliás, essa situação é mais do que provável – qualquer criança que consiga ler também consegue fazer uma busca no Google. E mais: com os assistentes inteligentes, em breve nem vai precisar saber ler para perguntar alguma coisa e ter sua resposta em segundos.
Isso é bom ou ruim?
Veremos em breve. Mas, na verdade, é uma pergunta inócua. A mudança virá, e faremos dela uma coisa boa ou ruim, como todas as novidades e inovações de qualquer natureza. A minha esperança é que as pessoas que chegaram a esse mundo antes da geração dos Millennials (vamos dizer que todos os “jovens de maior idade”) consigam superar os próprios preconceitos e experiências e enxergar o que Einstein enxergou há quase um século: a única constante no universo é a mudança.
Gostei bastante do texto sobre EAD. No entanto, entendo que um requisito obrigatório para essa forma de ensino, poderia ser sido explicitamente tratado: a disciplina. Embora o mesmo possa ser percebido de forma “diluída” ao longo do texto.
Por se tratarem de plataformas tecnológicas, os alunos são obrigados a cumprir tarefas diversas, bem como realizar entregas em datas e horários previamente estabelecidos, incluindo muita leitura e pesquisa de informação, sem poderem “negociar”, por exemplo, prazos. Dessa forma, planejamento é obrigatório. Nada de “jeitinho”.
Minha experiência em EAD ocorreu em 2008/2009. É certeza que de lá para cá essa forma de ensino evoluiu bastante. Foi um curso de especialização em Gerenciamento de Projetos de Software. Estava de férias do trabalho, porém o curso continuava. Viajei de férias com minha família e o notebook foi “bagagem” obrigatória.
Aquela velha imagem de que cursos à distância eram “moleza”, pelo simples fato de “estudarmos em casa”, se dissipou rapidamente.
Olá, Paulo!
Obrigado pelo comentário!
Você tem toda razão, a disciplina é um dos grandes desafios da EAD. A questão cultural tem um impacto muito forte nesse sentido – no Brasil, assim com em outros países, fomos todos educados para manter “alguma” disciplina como forma de respeito aos demais ou como resposta a uma pressão contínua para alcançar algum objetivo. Na EAD, estamos aparentemente sozinhos, então ficamos mais relaxados – não existe um professor olhando se estamos estudando ou não, ou a pressão de um sinal que vai tocar para avisar que o prazo acabou. A gestão desse tipo de coisa é de responsabilidade do aluno, que não está acostumado.
Mas isso tem seu lado positivo. Aprender a se auto-disciplinar é uma boa experiência, que pode ser muito útil em outros momentos da vida.
Vale a pena escrever mais sobre esse assunto. Talvez em uma nova publicação num futuro breve…